
A lição do Caminho
Mário Vale Lima
Ao contemplar a Praza do Obradoiro, após ter percorrido os 790 km do Caminho Francês entre Saint-Jean-Pied-Port e Santiago de Compostela, o peregrino Lúcio Lourenço recordou um relato de Urbano Tavares Rodrigues, de 1949, mas perfeitamente atual:
“Vêm desde muito longe a pé, de Roncesvales, onde se concentram. Queimados pelo sol, emagrecidos, marciais. Alguns, estropiados, coxeiam. Rente a mim passa um gigante loiro, asturiano por certo, com uma perna entrapada, visivelmente exausto, mas de olhar alto, chamejante, mirando porventura a Porta Santa com uma emoção que lhe invejo (…) completam-se, confraternizam, irmana-os um sopro de cruzada, formam um verdadeiro todo”.
Durante 34 dias, caminhando num chão já pisado por milhões de peregrinos ao longo de muitos séculos, foi registando as suas reflexões sobre o que viu e vivenciou no Caminho, a bondade e a maldade, os diálogos a sós consigo, as interrogações e as respostas sobre o sentido teleológico da nossa fugaz existência terrena.
Pensar-a-caminhar era um costume de vários filósofos e pensadores (Rousseau, Kant, Walter Banjamin), em que iam pensando ao ritmo do caminhar. Nietzsche pensava caminhando, fazendo pausas para escrever entre as suas caminhadas nas montanhas periféricas de Turim.
O diário daquela intrépida aventura, escrito com simplicidade e graça, foi publicado pela Ego Editora com o título "Trazer o Caminho para Casa".
Segui o peregrino lendo o livro, etapa a etapa, fazendo as mesmas pausas e meditações, constatando a fé com que contempla a obra do Criador e a sua convicção de que “há algo maior que nos guia e que nos sustenta”, num relato envolvente em que as suas bolhas dos pés nos magoam até à chegada a Santiago.
Herman Melville dizia que “a vida é uma contínua viagem de volta a casa”. Lúcio diz algo semelhante: “O Caminho é uma metáfora da Vida” desde o acordar e calçar as sapatilhas para mais uma etapa, a mochila que deve ser aliviada de quanto é prescindível para não sobrepesar nas léguas de caminhada em ensimesmado silêncio, em meditação, em deslumbramento perante as montanhas sulcadas pelo Caminho, na quietude nas catedrais convidando à oração. “A Eucaristia no santuário de Santa Maria del Cebreiro foi, para mim, o momento espiritual mais elevado de toda a Peregrinação, isto é, o sentir-me senti perto de Deus”.
Além das estâncias religiosas e dos albergues de apoio aos peregrinos, o autor assinala outros pontos de referência do património cultural e humano do Caminho: o Sítio Arqueológico de Atapuerca, um dos testemunhos mais importantes da estudo da evolução humana; o memorial de Monte de la Pedraja, que homenageia 300 fuzilados durante a Guerra Civil de Espanha; o Refúgio de Manjarin, uma aldeia perdida na montanha, sem eletricididade e com água de fonte, numa ambiente medieval, com um único habitante que ali decidiu ficar para dar apoio aos peregrinos: a riqueza da Capela do Palácio Episcopal de Astorga, faustosa obra de Gaudi, "manifestação fantástica da ligação entre a arte e a espiritualidade".
Mas, segundo o próprio Lúcio, a espiritualidade que o acompanha no caminho não lhe condena os prazeres mundanos: por exemplo, o de saciar a sede com um "vinho branco fresco sentado numa esplanada de pernas esticadas", elevado a um momento de intensea felicidade, como se, por momentos, a morte não existisse.
Nem lhe inibe os momentos de comicidade que se podem encontrar num albergue: uma septuagenária a traquinar em cuecas brancas às bolinhas vermelhas nas zonas comuns; ou os mais aparatosos "quando se apagam as luzes começa o festival: roncos profundos, ritmados ou caóticos (…) Em alguns intervalos surgem, contudo, pequenos milagres, aqueles segundos de silência absoluto das apneias do sono, momentos sagrados em que o peregrino ao lado parece ter, felizmente, falecido. Um breve alívio... até à inevitável explosão sonora da ressurreição que nos faz repensar toda a existência". Nem mesmos os momentos de inspiração filosófica que o eleva a este pensamento sublime: "Há algo profundamente mágico num copo de vinho branco, fresco, à sombra, num qualquer fim de etapa. Porquê complicar quando há o vinho branco?".
O convite à transformação da vida quotidiana, à semelhança da experiência vivida em cada etapa do Caminho: a resiliência perante as adversidades ("a letra de Bella Ciao, talvez o maior hino à resistência e ao sacrifício"), a tolerância perante os erros de outrem, a compaixão com o sofrimento alheio, a fraternidade sem reservas (Lúcio conta um episódio para-bíblico, verídico, de ter sentado à mesa de consoada, no albergue de Barcelos, um peregrino, por prestidigitação do acaso, chamado Jesus, que numa noite de batal ali bateu à porta).
"A verdadeira peregrinação acontece dentro de nós. (...), aprender com cada passo, fortalecer as nossas relações humanas e abraçar a transformação pessoal que a jornada nos oferece. É esta a lição que levo para casa".
Talvez neste pensamento do autor se encontre a interpretação mais profunda e mais rica do título do livro.